sexta-feira, 31 de julho de 2009


Os campos


Lá estão os homens, parados e presos na moldura de sua breve existência. Caminham, trabalham, ruminam, procriam, deitam-se e dormem. O sol e a chuva são seus antigos deuses. Hoje já não creem. Hoje trabalham para o sustento como sempre fizeram, mas agora estão num cercado. Olham adiante e veem o resto do mundo, que lhes parece tão belo e distante. Não sabem como chegar mais adiante. Não sabem como sair do cercado, como arrombar a cerca, ganhar o mundo, desbravar matas e florestas, criar um novo mundo, uma nova sociedade. O mais próximo desse idílio é ver os filhos crescerem para o trabalho. E há muito trabalho nos campos. É preciso construir, derrubar, guerrear, roubar, matar, estuprar. Um dia ficam velhos, os homens. E morrem. O cercado continua lá, onde agora os filhos são os homens de hoje. Os filhos agora olham mais adiante como os pais olharam. Lá estão os filhos dos homens, parados e presos na moldura de sua breve existência.

Para contar aos filhos



Quando meus filhos crescerem, vou contar que um dia existiu uma mulher chamada Marilyn. Vou dizer que, para namorar, casar, ter filhos e envelhecer com eles, a vizinha, a secretária, a vendedora, a desocupada ou a prima estão lá fora, na rua, no mundo, à espera deles, príncipes desencantados, mas ainda príncipes.




Mas vou dizer também que, para sonhar, imaginar, divagar, delirar ou se extasiar, ficaram algumas imagens de Marilyn. Nelas, eles podem vislumbrar o poder inebriante que a beleza exerce sobre os homens. Verão uma mulher diferente da realidade. Uma mulher com ar angelical, com olhos adormecidos e adormecedores, com lábios tecidos para oníricos beijos vermelho-púrpura, com ombros a estreitar-se para o melhor esbanjamento dos seios, das costas e das nádegas, com coxas fartas e modeladas no classicismo greco-romano. Ah! Eles verão! Verão uma mulher feliz, com o olhar malicioso e o sorriso traiçoeiro. Verão, num ato de concessão da parte dela talvez, uma olhar parado na eternidade do tempo dos mortais, como a se apiedar dos olhos que a desejam. Verão, no conjunto, um convite à metafísica do corpo. Verão, nos detalhes, o brilho físico da alma feminina no mais alto esplendor. E, se foram ateus, talvez duvidem de sua crença. Sim, talvez tenham, ao ver Marilyn, a dúvida quanto à inexistência de Deus.

A carta


Ainda espero. Leio, ando, viajo. E continuo a esperar. A salvação da humanidade depende daquela carta que tanto espero. É por ela, a carta, que ainda abro e fecho meus olhos todos os dias. Dizem que jamais virá. Dizem que Maceió é uma cidade linda. Dizem que a felicidade está dentro da gente. Dizem. Eu não acredito no que dizem. Acredito na carta. Ela virá. Sinto. Dizem que sou um sonhador. Esperam que eu acredite. Mas como acreditar? Nunca vi a beleza que dizem de Maceió. Já procurei a felicidade em cada cantinho do meu eu mais intimamente profundo. Sabem o que achei? Ah! A certeza de que a carta virá. Sim, achei algo mais: ela será anônima.

O quarto da solidão


Há locais que costumam ser associados à solidão. Nenhum outro expressa (e acolhe) tão bem quanto o quarto. Pode haver móveis ou coisas antigas, como a imprimir o passado onde não há presente. Pode haver alguém deitado na cama, como a sugerir um resquício de amor. Pode haver sons, cores, brilhos e sombras, como a esconder palavras que se guardam caladas. Não interessa se o quarto é pequeno ou grande. Na solidão, ele é sempre imenso, vasto, extenso. De uma pare à outra, caminha-se por anos de lembranças e abandonos. Da cama à porta, vê-se uma longa vereda margeada por reminiscências de infâncias perdidas. A minha. A tua. A de todos nós. O quarto esconde tudo. O quarto mostra tudo. O quarto é a medida exata de cada solidão.

Os olhos


Esses teus olhos continuam. Cercados de cores e postos numa face docemente sóbria. Quando pequeno, eu evitava olhar nos olhos das meninas daquele tempo. Tinha medo do que escondiam. Hoje, continuo a me esquivar, como se culpado ainda fosse. Hoje sei o que há por trás, e dentro, e sobre, e ao redor, e ao fundo desses teus olhos de mel e luz. Aprendi a perceber a monstruosidade da tua beleza. Falta apenas aprender a dizê-la.

Meus livros


Guardei meus livros. Guardei-os ontem à noite. Cansei-me de tanta sabedoria. Cansei-me de tanta auto-ajuda. Cansei-me de tanta poesia. Os romances e os contos me enfadam. Chega de Abrão, de Isaac, de Jacó! Estou cansado como uma criança a dormir com a face pousada sobre a mão que segura o pequeno livro de aventuras. Estas, não as quero nem na realidade. Cansei-me da realidade. A vida é tão simples fora da realidade. A vida é tão real nessa simplicidade. Simples como a prosa de Graciliano. Fácil, fácil. Aliás, há tempos não releio Graciliano. Vou abrir uma exceção. Só uma. Só um livro. Mas só depois de acordar. Ah!, que saudade de Fabiano e de Sinhá Vitória!

Quem és tu?


Quem és tu, ser que me olha com esses olhos de macaco? Tua pele branca, amarela, cinza ou preta nada me dizem sobre tua origem ou teu destino. Tua boca calada parece fechada há séculos. Que me dizes, então? Há algo a ser confessado? Que tens feito pelos campos e pelas cidades, além de comer, beber, transar e lamentar? Onde estão teus irmãos? Ainda brigas com eles por um naco de osso ou por uma sombra sob a árvore? Ainda não te cansaste? E o que construíste junto aos teus irmãos, ainda está de pé ou destruíste por achar que eras dono de tudo? Será que ainda te lembras da tua infância? Sabias tão pouco das coisas da vida. E hoje, que sabes? Que sabes de ti e de teus irmãos? Ah! Percebo que em teu mundo só cabe a ti. Desejas viver sozinho pelas eternidades dos dias na terra? Desejas tomar posse, definitivamente, sobre todas as riquezas e todas as belezas? Que farás, então, sozinho e dono de tudo? Serás feliz? Feliz com quem? Quem irá te ouvir ou ler tuas histórias? Quem irá cuidar de ti quando o tempo chegar ao fim? Quem irá cuidar das tuas coisas depois de ti? Ah! Percebo novamente que não costumas te perguntar sobre todas essas coisas. Talvez por isso continuas a me olhar com esses olhos de macaco. Mas teus olhos não são esses. São outros os teus olhos. É outra a vida que podes viver e deixar que outros vivam. É outro o destino que podes construir. Mas, se quiseres continuar macaco, tira teus olhos de mim.

O enlace


João saiu mais cedo do trabalho. Chegando em casa, a mãe mostrou-lhe a roupa passada e a toalha. A mãe ria e chorava. João apenas sentia uma ausência de tudo. Longe dali, Maria era vestida pelas vizinhas e primas e irmãs e mãe. Ninguém chorava. Riam, riam e riam. A felicidade estava tão pertinho. Maria sentia tudo de uma só vez. Até mesmo a presença de Deus. Na igreja, o padre perguntou. Eles responderam. Ele agora era o marido. Ela, a esposa. Depois, o tempo cuidou de tudo. Ele a conheceu. Pouco, é verdade. Ela também o conheceu, muito, a bem da verdade. Viveram não para sempre, mas para o trabalho, para os filhos, para os anos contados. Viveram não felizes, mas na santa paz dos eternos dias de brigas.

Adeus


A menina disse adeus. Mais um nessa ligeira história de chegar, ficar e partir. O corpo que se vai fica, permanece por dias e noites nas coisas da casa, do trabalho. Colocaram um chapéu na menina. Seu rosto não tem importância. É o rosto que fica de outra forma. A menina não entende a morte. A morte não deseja a menina. Ainda. O que fazer com o desconhecido? Como aceitá-lo? Como fugir dele? Como esquecê-lo? A menina não sabia. A menina disse adeus. E talvez tenha pensado, pela primeira vez, em se dirigir a Deus.


O riso



Há um riso que desafia a razão. Sim, há o riso do sábio, o riso do estúpido, o riso vendido, o riso buscado, o riso entristecido e o riso envergonhado. E há o riso inexplicável. É quando a boca grita ao mundo uma alegria desconhecida. É quando os olhos se fecham às coisas tristes, feias, nojentas e sangrentas da vida. É quando celebram um único e pequeno instante de uma alegria nascida sabe lá Deus onde, quando ou por quê. Os olhos, naquele instante, enxergam apenas um ínfimo momento da beleza do existir por existir. Educação, saúde, segurança, política, economia e guerras não existem naquele instante. O passado não existe. O futuro não existe. Existe, e só, um fragmento do presente, um miúdo de alegria que fica congelado nos segundos em que os olhos se fecham, a boa se abre, o riso nasce e a razão morre. De fato, a felicidade não existe. Mas quem disse que não há risos felizes?